<span data-metadata=""><span data-buffer="">Astrologia e Cinema

Edil Carvalho

Postado 1 ano ago

Apresentação

“Fazer um filme é organizar um universo inteiro. “

Ingmar Bergman

     O cinema e a astrologia têm mais em comum do que possa parecer à primeira vista. Afinal, se considerarmos que o cinema é a arte da visão por excelência e que a astrologia descreve o modo muito particular como o sujeito vê e interpreta a vida, entenderemos que ambos não passam de um olho que mira o mundo sob determinada perspectiva. Neste sentido e somente neste sentido, percebe-se o quanto o cinema e a astrologia se irmanam: enquanto um filme nos mostra o mundo que se abre e se descortina perante a câmera de um cineasta, um mapa astrológico nos mostra o mundo que se abre e se descortina perante uma consciência. Por isso, da mesma maneira que um filme nos revela a visão muito particular que o cineasta tem do mundo, um mapa astrológico nos revela a visão de mundo que o sujeito projeta com sua mente.
     Sendo assim, a investigação em questão não pode ser toma da apenas como uma investigação sobre cinema, tampouco sobre astrologia. Ela não se resume nem a uma coisa e nem a outra, visto que o que se encontra em jogo é uma visão de mundo, uma cosmovisão, a saber, certas experiências que o mundo nos reserva e a que todos nós prestamos atenção. Afinal, são estas experiências que os cineastas mantêm insistentemente sob a perspectiva de suas câmeras e com as quais acabam compondo uma narrativa. Mas são justamente estas experiências – que estão sob perspectiva individual – que um mapa astrológico designa. Se há, portanto, um laço de parentesco entre o cinema e a astrologia, é esse: ambos tratam de perspectivas, ambos en cerram uma visão de mundo e por essa razão revelam uma dimensão importante da psique humana, a cognição individual.
     Para demonstrar tal hipótese, são exibidos ao longo da investigação trechos de filmes de cineastas diversos, com o seguinte propósito:

analisar determinado tema que alguns cineastas mantêm in sistentemente sob a perspectiva de suas câmeras, para verifi car logo em seguida se há, em seus mapas astrológicos, alguma configuração em comum, responsável por tal perspectiva;

considerar o mapa astrológico de outros cineastas que pos suam esta mesma configuração, para verificar logo em seguida se o mesmo tema está ou nãosob enfoque e perspectiva.

     Procedendo assim, ora partindo do cinema para a astrologia, ora da astrologia para o cinema, compreendemos os temas  com os quais os cineastas tecem e constroem a narrativa de  seus filmes. Mas procedendo assim, compreendemos também como todos nós tecemos e construímos a narrativa da nossa própria vida, haja visto que a nossa visão de mundo acaba por  determinar nossas escolhas e nossos passos, dando a nossa vida uma história, uma narrativa muito específica – o que  mostra o quanto a nossa vida é um filme. 

Introdução:

A Singularidade Humana e a Cognição Individual 

     Há psicólogos que se interessaram em desvendar o misterioso território da singularidade humana e que se debruçaram sobre o modo como cada ser humano desenvolve certas características e firma uma individualidade, chegando à conclusão de que há uma relação entre aquilo que a pessoa é e o modo como ela conhece. Um dos psicólogos que trilhou esse caminho foi Allport. Segundo este autor, há naturalmente diversas áreas da psicologia às quais a individualidade não interessa. Mas quando estamos interessados em orientar e predizer o comportamento de João e compreender a qualidade própria mente joanina de João, é necessário fazer uma clara distinção entre o que é de suma importância para ele e o que simplesmente lhe interessa como fato, isto é, entre o que ele sente ser vital e central no seu desenvolvimento e o que pertence à periferia da sua existência.

     Esta distinção é necessária porque a personalidade é formada por diversos fatores, tais como hábitos e capacidades, quadros, referências, fatos e valores culturais que, como ele mesmo explica, raras vezes ou nunca nos parecem perto de nós ou importantes. No entanto, ela é formada também por aquilo que está perto de nós e que julgamos importante, isto é, as regiões de nossa vida que consideramos como de modo especial nossas. Ainda segundo Allport, isto só ocorre porque o ser humano, ao confrontar-se com um número demasiado grande de fatos, vê-se forçado a desenvolver um foco, um sentido discriminatório dos mesmos, conferindo assim um sentido de importância a alguns deles e relegando os outros a uma posição secundária. Para Allport, não resta dúvidas: os problemas da vida reclamam escolha e sistematização, segundo a relativa importância de cada um destes tem para cada de nós. Por isso, para esse psicólogo, se quisermos conhecer uma pessoa em sua essência, temos que considerar este fator específico formador da sua personalidade: a sua hierarquia de interesses. Temos que considerar, como ele mesmo denomina, a sua “ordo amoris”, a ordem do seu amor: aquele conjunto de aspirações que o sujeito nutre em relação à vida – a vida que deseja levar. Afinal, é essa ordo amoris que traça uma linha através da qual o indivíduo se orienta e com a qual acaba por escrever a sua própria história, revelando a forma muito particular como ele se dirige para o futuro e constrói um projeto vital, ao mesmo tempo em que constrói a si mesmo, desenvolvendo uma personalidade única e diferenciada.

     Por isso, para Allport, se realmente desejamos conhecer uma pessoa, não podemos considerar o seu ser e a sua individualidade à revelia dos fatos que se passam no mundo e que ela tomou como próprios para a construção de si mesma e do seu projeto vital. Se desejamos conhecê-la, temos que considerá-la como um todo tão singular quanto o ser-no-seu-mundo. Temos que considerar, como ele mesmo adverte, como um homem vê o seu mundo, isto é, o mundo do qual a pessoa já se apossou e no qual vive e habita – o seu mundo. Como ele mesmo diz, se realmente desejamos conhecer as pessoas, temos que conhecer seus estilos cognitivos, as suas maneiras características de viver no mundo.

    Como se pode perceber, Allport entende que há uma relação muito íntima entre aquilo que uma pessoa é e o modo como ela conhece: afinal, o desenvolvimento e a formação da sua individualidade se encontram profundamente associados a um foco, a um sentido discriminatório que escolhe certos fatos em detrimento de outros, a um estilo cognitivo que determina sua maneira característica de viver no mundo. Allport, portanto, concebe o ato de ser e de ver como atos indissociáveis, como os dois lados de uma única e mesma moeda, como se a singularidade humana fosse de natureza cognitiva.

     Por isso, se considerarmos que a singularidade humana é de natureza cognitiva e se lembrarmos que o mapa astrológico nos fornece um diagnóstico daquilo que nos é mais próprio e singular, há de se suspeitar que ele nos fornece informações a respeito do modo como particularmente enxergamos o mundo. Aliás, se para compreender a qualidade propriamente joanina de João e orientar e predizer seu comportamento é necessário considerar os fatos, eventos ou experiências que se sucedem no mundo e que ele toma como próprios através de um sentido discriminatório e se um mapa astrológico encerra essa promessa – a promessa de compreender a qualidade essencial e própria de alguém e de orientar e predizer seu comportamento – há de se supor que ele possua alguma configuração que descreva as experiências às quais prestamos particularmente atenção.

    Mas um mapa astrológico possui essa configuração: as casas astrológicas

As Casas Astrológicas e as Perspectivas Humanas

     Um mapa astrológico é composto pelo zodíaco. O que é o zodíaco? O zodíaco é uma faixa que amarra e circunda a esfera celeste que, por sua vez, envolve e engloba a esfera terrestre. Ele é composto pelos signos que vão de áries à peixes. O zodíaco, com seus signos, constitui a parte mais conhecida e popular de um mapa astrológico. Mas o mapa astrológico não é com posto somente pelo zodíaco: ele é composto também por planetas. Os planetas são estes astros que fazem suas trajetórias ao longo do zodíaco em velocidades distintas. Mas além do mapa astrológico ser composto por zodíaco e planetas, ele é com posto também por casas. As casas são setores que aparecem desenhados em um mapa astrológico e constituem a parte menos conhecida de um mapa. Elas descrevem a visão que um observador, posicionado em determinada superfície da terra, tem do céu e do zodíaco que o cerca.

     Considere, à título de ilustração, que um determinado ponto representa um sujeito e que ele se encontra sobre uma superfície determinada da Terra, representada por uma reta. Esta reta, na astronomia, é chamada de “horizonte do observador”. Ela representa a posição do sujeito em uma determinada superfície, a partir da qual ele observa a trajetória dos astros ao longo do zodíaco que circunda a terra e que, por sua vez, também o circunda.
     Em determinado momento, um planeta vai aparecer e des pontar exatamente na linha deste horizonte. Sob a perspectiva do observador, a posição que este planeta ocupa no céu acaba por determinar uma direção espacial muito específica: aquela que está a sua frente. Mas passadas algumas horas e dado que a Terra gira e temos a impressão de que é o céu que está girando em movimento contrário, esse planeta que apareceu inicialmente na linha do horizonte vai atingir a sua culminação máxima. Sob a perspectiva do observador, a posição que esse planeta passa a ocupar no céu determina também uma direção espacial muito específica: aquela que está acima dele. Mas passadas algumas horas e dado o movimento descrito acima, aquele planeta que surgiu na linha do horizonte e que atingiu sua culminação máxima vai agora se por, ou seja, vai começar a sumir do outro lado da linha do horizonte. Sob a perspectiva do observador, a posição que este planeta ocupa no céu determina também uma direção espacial muito específica: aquela que está atrás dele.

      Mas como a Terra continua girando e temos a impressão de que é o céu que está girando em movimento contrário, passadas algumas horas, aquele planeta que surgiu na linha do horizonte, atingiu sua culminação máxima e por fim se pôs, vai agora se colocar em outra posição, diametralmente oposta à sua culminação. Sob a perspectiva do observador, a posição que esse planeta passa a ocupar no céu determina também uma direção espacial muito específica: aquela que está abaixo dele.
     Estas quatro direções espaciais – frente, acima, atrás e abaixo – são muito importantes para a compreensão da estrutura de um mapa astrológico. E por quê? Porque são elas que designam as quatro casas astrológicas mais importantes de um mapa: respectivamente, a casa 1, a casa 10, a casa 7 e a casa 4. Todas as outras casas astrológicas são determinadas matematica e as tronomicamente a partir destas e, assim, temos estabelecidas as doze casas astrológicas. E cada uma delas designa – como fiz questão de apontar – uma direção espacial muito específica em relação a perspectiva do observador. Mas o que isso significa? Isso significa que, enquanto não temos um observador posicio nado em determinada superfície da Terra, temos apenas um espaço indiferenciado. Mas a partir do momento em que um observador ocupa tal posição, o espaço se diferencia em doze direções espaciais em relação a sua perspectiva. Isto significa que não há direção espacial sem a perspectiva do observador e que a noção de direção espacial corresponde e equivale à noção de perspectiva.
     Se há, portanto, algum componente do mapa astrológico que designa de maneira explícita a noção de perspectiva ou de direção da atenção, esse componente só pode ser um: as Casas Astrológicas, como postula Carvalho. São elas que designam as doze maneiras possíveis de encararmos e enxergarmos o mundo a nossa volta, como também fazem os cineastas. Afinal, todo filme de cunho autoral carrega a impressão digital do seu autor, revelando sua visão de mundo, a perspectiva sob a qual ele criou sua história.

     Perspectiva, neste trabalho, designa, como indica uma das acepções do dicionário, “o ponto de vista”, isto é, “o modo particular com que cada pessoa, influenciada por seu tipo per sonalidade e por suas experiências, vê o mundo”. Contudo, devo lembrar também que a noção de perspectiva ou de ponto de vista constitui um dos princípios explicativos de uma obra de arte, como postula Souriau, filósofo da área de estética que defende explicitamente a existência de uma analogia estrutural entre a obra de arte e a astrologia.
     Aliás, é pelo fato de haver uma analogia estrutural entre a astrologia e a obra de arte que a astrologia tem muito o que dizer sobre o cinema: afinal, através das casas astrológicas que se encontram em destaque no mapa de um cineasta, com preendermos melhor quais são os temas, isto é, as experiências humanas que ele mantém insistentemente sob a perspectiva da sua câmera e com as quais acaba compondo uma narrativa. Mas o cinema tem muito o que dizer também sobre a astrologia: afinal, os temas abordados pelos cineastas nos ajudam a compreender melhor os significados das casas astrológicas, haja visto que eles sofreram algumas alterações ao longo da história, como explica Brennan. Aliás, os temas abordados pelos cineastas nos ajudam até mesmo a confirmar em que Casa um planeta se encontra, quando temos dúvida de sua real posição. Por tudo isso, percebemos o quanto a astrologia e o cinema se auxiliam mutuamente e o quanto, juntos, podem elucidar uma dimensão que é própria e inerente a ambos: a cognição humana.
     É o que pretendo demonstrar a partir de agora, através da análise de doze filmes de cinema.

Bibliografia

ALLPORT, G. Desenvolvimento da Personalidade. São Paulo: Editora Herder, 1970.

_______________ . Personalidade. São Paulo: Editora Herder, 1969.

BRENNAN, C. Hellenistic Astrology: The Study of Fate and For tune. Denver, Colorado: Amor Fati Publications, 2017.

CARVALHO, O. O Caráter como Forma Pura da Personalidade. Rio de Janeiro: Astrocientia Editora, 1992.